
CHELAS
A história que ficou por contar
A luta de seis mulheres. A reconstrução do bairro.
Uma nova vista. Um novo olhar.
A vontade de vencer dos jovens.
Reportagem de Ana Luísa Monteiro
Quem por ali passa vê o Tejo.
Durante a semana, sente-se a presença das rotinas. As crianças e jovens a sair da escola, com a mochila às costas no meio de correrias. Já ao fim de semana sente-se a calma de quem descansa e o alvoroço de quem vai à famosa feira do Relógio.
Quem por ali passa não vê lixo, nem droga, nem fossas. Não anda lado a lado com as cabras, nem encontra cadáveres na rua.
Marvila é a segunda maior freguesia de Lisboa e é lá que está inserido o Bairro de Chelas. Um nome que acarreta memórias difíceis de uma zona que, em tempos, ninguém queria entrar.
A história é contada na primeira pessoa por Augusta. À medida que vai andando vai apontando para locais que lhe relembram histórias passadas, mas que a fizeram crescer enquanto mulher e mãe.

Antes eram drogas pesadas, viam-se jovens caídos nos passeios, a injetarem-se.
Hoje em dia a geração já tem outro sentido.
Augusta Batista, moradora de Chelas
Presidente da Associação Eco Estilistas
Augusta abriu uma capa. A lombada estava cheia de purpurinas douradas. Então explicou: "Este é o nosso livro de ouro. Guardamos aqui as nossas memórias. As nossas vitórias."
Em arquivo estavam fotos, algumas já gastas pelo tempo. Conforme folheava contava o que via da janela de casa. "Havia caminhos de cabras, onde os animais passavam no meio das pessoas."
Mas esse não era o único problema. "Sentia-me triste. O meu filho brincava cá fora e podia ser engolido por uma fossa a céu aberto", acrescentou.
Augusta veio de Angola para Portugal em 1975 com a família. A primeira paragem foi em Marinhais, Santarém, e só em 1980 é que se mudou para Lisboa. De malas e bagagens, recém casada, foi morar para Chelas. Um ano depois teve um filho, o Bruno.
Ao mesmo tempo que a vida avançava, os problemas iam-se agravando. "O ambiente era terrível porque nessa altura tínhamos muito lixo às nossas portas, o que trazia ratos, cobras, toda a bicharada.", relembrou.
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"Entretanto, eu e mais cinco mulheres aproximamo-nos do centro comunitário porque percebemos que a população - maior parte dela analfabeta - não sabia como mudar isto."
Augusta percorria o prédio onde morava. O filho, Bruno, batia à porta e a mãe falava com os vizinhos. "Eu sensibilizava as pessoas para comparecerem nas reuniões, para que alguma coisa mudasse", conta.
Este foi o primeiro passo. As pessoas começaram a aparecer aos encontros com a assistente social.
De Chelas para o Parlamento Europeu
Também o maior desafio de vida de Augusta estava à porta. Num tom de graça diz "Eu nem sabia ir ao Rossio, quanto mais ir para o Parlamento Europeu". Mas o convite, lançado pela assistente social, trouxe a coragem no lugar do medo. Era com este propósito que encarava a vida. Sem medo.
"Eu participei num seminário de mulheres. Levava os problemas aqui do bairro para mostrar às deputadas o que se estava a passar."
Augusta fez parte destes seminários desde 1998 até 2000. Numa dessas viagens algo inesperado aconteceu. "Um dia estava no aeroporto, quase pronta a embarcar, e uma colega minha foi-me levar umas fotografias de uma mulher do bairro que pedia que eu mostrasse às deputadas as agressões que sofria." Foi nesse momento que se apercebeu do impacto do seu trabalho. Decidiu ir mais longe.
As obras feitas a partir do lixo
Mães, donas de casa e costureiras decidiram dar vida ao lixo. Augusta aponta para uma foto. "Este guarda sol, deixado debaixo desta ponte, foi utilizado para fazer um vestido". A ideia partiu dela, com o apoio das cinco mulheres com quem trabalhava para a comunidade.
Ao grupo de trabalho foi dado o nome de Eco Estilistas. O objetivo era aproveitar o lixo das ruas de forma pedagógica e lúdica. Começaram a criar desfiles e os jovens começaram a envolver-se cada vez mais. Ao mesmo passo, a comunidade começou a recolher lixo para ajudar no processo criativo.
O projeto, que começou em 1989, ainda hoje tem impacto. Desde então, os desfiles são uma imagem de marca.
Só em 2009 é que os Eco Estilistas se formaram como uma Associação de Inter-Ajuda de jovens.
Hoje em dia, disponibilizam atividades a todos os moradores da zona. Entre as aulas de Kizomba e as atividades desportivas, nasceu uma rádio local feita por jovens. Aos Domingos, na Escola Básica de Lóios, ouve-se a Rádio Zip, ao mesmo tempo que avós e netos cozinham bolachas e fazem desenhos. "Bons Domingos" junta crianças e idosos, numa troca de experiências e vivências.
7% dos habitantes são analfabetos
19% dos habitantes têm mais de 65 anos
Dados da Junta de Freguesia de Mavila
Nós estávamos aqui dentro, tínhamos que ver tudo, sentir tudo"
Why We're Great >

Alguns jovens desapareciam, para desintoxicações, depois apareciam desfigurados.
Chelas de hoje
"Para quem viveu esta situação, hoje podem estar orgulhosos. Era um sítio onde ninguém queria passar e hoje acolhe o maior evento de música do mundo, o Rock in Rio", diz Augusta. Com um sorriso aberto conta que Bill Clinton já esteve em Chelas, quando foi ver o concerto dos The Roolling Stones.
Continua a dizer que nunca pensou em se mudar dali. Que nunca teve medo e que sempre andou livremente pelas ruas do bairro. Trabalha na Escola Básica de Lóios há 34 anos, como auxiliar de ação educativa. É conhecida por todos os que lá passaram. Chamada de Dona Augusta. A mulher que viveu em Chelas e para Chelas.

Olho para a minha mãe com uma grande admiração, mas também com muita responsabilidade"
Bruno Batista, morador de Chelas
Filho de Augusta
Bruno não gostava de olhar para si e para os colegas como os "desvalorizados". Argumenta que "é importante aprendermos a arranjar soluções para os problemas".
Trabalha como técnico de segurança, mas nos tempos livres dedica a vida aos jovens da zona. Olham para ele como um irmão mais velho.
Desde os seis anos que acompanha a mãe e juntos vão-se aventurando de projeto em projeto. Apesar de conhecer a realidade, sempre gostou de brincar com toda a gente e tinha amigos de todo o tipo. Com o passar do tempo, começou a perceber que alguns estavam só de passagem. Alguns conhecidos desapareciam do mapa outros envolviam-se numa vida marginal de drogas e roubos. Escolheu dizer que não e, agora, ajuda os jovens a seguir o mesmo caminho.
Relembra uma infância com poucos recursos, mas feliz. "Aprendi a construir coisas com o que tinha. Isto é importante", conta.
Aos 17 anos, no ano da EXPO 98, viu a estrada de entrada para Chelas pintada pelos moradores. No chão estava escrito "Entrou no terceiro mundo". Uma chamada de atenção para quem se deslocava para o Parque das Nações. Mas foi nessa mesma altura, que os políticos começaram a olhar mais para Chelas.
Hoje em dia, Bruno conta que querem apagar o nome do bairro. O objetivo é que seja apenas Marvila. No entanto, quem se dirige de metro para a freguesia, apanha a linha vermelha com a paragem Chelas. "O processo vai ser demorado, dado as questões económicas que acarreta", refere. Por outro lado, as placas da saída da segunda circular, foram todas alteradas.

Histórias que atravessam gerações
Com uma capacidade de comunicação acima da média, Cristiana, de nove anos, enumera as atividades que lhe são oferecidas pela escola. Inglês, expressões, ginástica e natação. Um horário preenchido para uma aluna do quarto ano. Anseia, um dia, ser professora na sala onde hoje estuda.
O PASSADO
"Ouvi dizer que havia barracas. Não era uma zona muito segura"
O PRESENTE
"Pode dizer-se que me sinto segura. Gosto muito de andar na escola"
Paulo tem 26 anos e é bagageiro no aeroporto de Lisboa. Largou os livros cedo para poder ajudar os pais em casa e ganhar independência. Sonha um dia voar mais alto e sair de Chelas. No entanto gostava de poder ter uma casa na zona.
O PASSADO
"Havia muitos sem-abrigo, muita droga também"
O PRESENTE
"Já há muitos parques, muitos pavilhões desportivos"
Com 82 anos, muitos filhos e uma vida recheada, tem sempre um sorriso na cara. Frequenta o Centro de Dia Comunitário, onde faz diversas atividades. Alinha nas danças, nos jogos de cartas e nas visitas ao doentes. Gosta de se sentir viva. Participa nos "Bons Domingos" e partilha com os mais novos a sua forma de encarar a vida.
O PASSADO
"Os meus filhos brincavam em casa"
O PRESENTE
"Está muito diferente de quando eu vim para aqui. Está melhor"